Na quarta-feira, 23 de outubro, um homem de 45 anos, identificado como Edson Fernando Crippa, matou quatro pessoas e feriu outras oito em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, no Brasil. Entre os mortos estão o pai e o irmão do atirador, além de dois policiais militares. Edson manteve os familiares como reféns em casa e as negociações com a polícia duraram cerca de nove horas. Entre os sobreviventes estão um guarda municipal, cinco policiais militares, além da mãe e da cunhada do atirador. Edson foi morto pela polícia durante a troca de tiros.
O ataque aconteceu após o atirador reagir à abordagem policial durante a averiguação da denúncia de maus-tratos a um casal de idosos que, segundo relatos, era mantido em cárcere privado e impedido de sair de casa. Segundo informações de uma rádio local, o atirador tem registrado sob seu nome quatro armas, sendo duas pistolas, um rifle e uma espingarda.
O que aconteceu em Novo Hamburgo traz à tona os riscos de morar com proprietários de armas. Um estudo da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, divulgado em 2022 no Annals of Internal Medicine, mostrou que pessoas que vivem com proprietários de pistolas morreram por homicídio em uma taxa duas vezes maior que seus vizinhos em casas sem armas.
O debate sobre armamento civil há anos tem sido liderado por políticos da extrema direita no Brasil. Com o lema “Não é sobre armas, é sobre liberdade”, o discurso pró-armamento tem ganhado força e, como explicado no relatório “O que o Congresso Nacional fala sobre o armamento civil?”, de autoria de Terine Husek, gerente de pesquisa do Instituto Fogo Cruzado, desde 2015 os discursos pró-armamentistas dominam a tribuna nos plenários do Congresso Federal.
Após uma sequência de medidas assinadas no governo do então presidente Jair Bolsonaro (2019–2022) para facilitar a posse de armas, o número de armas para uso restrito nas mãos de civis no Brasil aumentou. Um levantamento realizado pelo advogado e gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, mostrou que o número de armas em circulação na categoria Caçador, Atirador Esportivo e Colecionador (CAC) no Brasil já é superior ao total de armas da instituição Polícia Militar. São armas que, quando chegam nas ruas, são roubadas, desviadas e acabam nas mãos do crime organizado, como mostrou um levantamento feito pelo jornal O Globo que explicava que entre janeiro e outubro de 2023, o Brasil registrou 1.259 ocorrências de armas que acabaram roubadas, furtadas ou perdidas, o que seria uma média de 126 por mês ou quatro por dia.
No Brasil, CAC é o termo usado para “‘Colecionador, Atirador Desportivo ou Caçador”, para exercer qualquer uma dessas categorias, é preciso obter um certificado de CAC, apresentando uma série de documentos exigidos pelo Exército, como identidade, certificado de antecedentes e comprovante de ocupação lícita. Mas durante os primeiros meses do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, os decretos assinados por ele permitiam que atiradores comprassem até 60 armas, e caçadores poderiam comprar até 30 armas, sem autorização do Exército ou de qualquer força de segurança. O número de munições compradas também aumentou para 2 mil, se for para uso restrito (armas de uso exclusivo das Forças Armadas, de instituições de segurança pública e de pessoas físicas e jurídicas habilitadas, devidamente autorizadas pelo Comando do Exército), e 5 mil para uso permitido a todos.
Em 2019, o número de armas nas mãos de civis era de aproximadamente 1,9 milhões, em 2022, último ano do governo Bolsonaro, esse número aumentou para 4,4 milhões. Em 2023, o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva revogou parte das normas que facilitavam acesso a armas e munição. Entre as medidas está a suspensão de novos registros de armas por caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) e por particulares (que são civis que não têm licença para CAC, mas que possuem permissão para que tenham uma arma em casa, como por exemplo para segurança pessoal); redução dos limites para compra de armas e munição de uso permitido; suspensão de novos registros de clubes e escolas de tiro; suspensão a concessão de novos registros para CACs; e criação de um grupo de trabalho para propor nova regulamentação para o Estatuto do Desarmamento. Apesar das medidas adotadas por Lula no primeiro ano de seu mandato, o número de armas nas mãos de civis voltou a crescer em 2023, e a 18ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostrou que o Brasil registrou 4,8 milhões de armas de fogo oficialmente registradas.
As normas revogadas por Lula voltaram a ser discutidas este ano no plenário do Senado Federal com o projeto de decreto legislativo (PDL) 206/2024 que tem, entre outras modificações, o fim da exigência de clubes de tiro a uma distância mínima de 1 quilômetro de escolas. (Clubes de tiro são locais que oferecem instalações para treinamento e competições de tiro, assim como programas de treinamento para iniciantes. As armas e munições usadas dentro dos clubes de tiro podem ser próprias dos frequentadores, ou oferecidas pelo clube.)
O nível de segurança nos clubes de tiro voltou a ser discutido depois que um menino de 4 anos foi atingido na cabeça por um disparo de arma de fogo em Herval d'Oeste, em Santa Catarina, no Brasil. A criança estava brincando em um sítio localizado próximo a um clube de tiro. O acidente aconteceu uma semana antes do caso do atirador de Novo Hamburgo.
O que estes dois casos têm em comum, além da proximidade entre as datas, é que evidenciam o quanto o afrouxamento das normas de controle deixaram a população vulnerável. O número de clubes de tiro saltou 1.400% durante os quatro anos de governo de Jair Bolsonaro, indo de 151 clubes em 2019, para 2.038 em 2022. Além disso, o número de CACs teve um crescimento de 665%, subindo de 117.467 em 2018 para 783.385 em 2022.
A consequência da irresponsabilidade da política de acesso à armas, além destes trágicos episódios, já é refletida há anos na porcentagem de mortes violentas no país. A edição mais recente do Atlas da Violência mostra que em 2022, 72,4% do total de homicídios no país foram praticados com armas de fogo, o que corresponde a 15,7 mortes por 100 mil habitantes. Em alguns estados os números são ainda mais alarmantes, a Bahia tem uma taxa de 37,2 e o Amapá 33,0.
Esse cenário aponta mais do que nunca a importância de se ter políticas sérias e rígidas de acesso ao armamento e munições. No Congresso Nacional, o discurso dos que defendem o controle de armas no Brasil perdeu força. É preciso retomar a discussão para que casos como o de Novo Hamburgo, de Santa Catarina e de muitos outros estados brasileiros deixem de acontecer.
Gabrielli Thomaz é jornalista, Assessora de imprensa do Instituto Fogo Cruzado e membro do programa de Especialistas emergentes no Forum on the Arms Trade
A inclusão no programa de especialistas emergentes do Fórum sobre Comércio de Armas e a publicação desses posts não indicam concordância ou endosso das opiniões de outros. As opiniões expressas são as visões do(s) autor(es) de cada post.